Massacre do Carandiru: a história que mudou as cadeias do Brasil

Paulo Eduardo Dias

De São Paulo

 

A morte de presos em cadeias pelo Brasil não é uma novidade do início de 2017. Assassinatos a sangue frio, com o maior requinte de crueldade possível é visto como uma forma de mostrar poder, deixar o rival com medo, assim como os vistos no Amazonas e em Roraima. No ano de 1992, as mortes entre os próprios detentos eram irrisórias como às vistas na semana passada. O inimigo dos presos quando de rebeliões era outro, o Estado. Em São Paulo, a primeira investida da Polícia Militar no Carandiru, em 1987, deixou 31 presos mortos. Já a segunda, em 2 de outubro de 1992, 11 homens foram executados com disparos de metralhadoras, rifles, espingardas calibre 12, pistolas e revólveres calibre 38. Para especialistas, tal execuções criaram o PCC (Primeiro Comando da Capital) facção criminosa que se expandiu pelo país, sendo rival do CV (Comando Vermelho) e da FDN (Família do Norte).

A manhã daquela sexta-feira, 2 de outubro de 1992, estava como as outras. Funcionários da carceragem trocando de turno por volta das 7h da manhã, PMs da muralha tomando seu posto e principalmente tranquilidade nas galerias e pavilhões da Casa de Detenção Doutor Flamínio Fávero. Próximo das 11h, o então diretor geral da casa, Ismael Pedrosa recebia novos inquilinos. Ditava às regras, o que se podia e o que não se podia fazer no ambiente. Como a maioria estava ali pela primeira vez, os ajudava a manter a boa convivência com os líderes e com aqueles que estavam há tempos confinados no local. Naquele momento, fora das salas de palestra, o pátio estava tomado de detentos. Naquele começo de tarde ensolarado em São Paulo, no campinho de barro, ocorria uma partida de futebol, era final de um campeonato entre os presidiários. Próximo dali, dois “moradores” acertavam as contas de uma desavença iniciada semanas antes. Segundo publicação da Revista Já, de 27 de setembro de 1998, do extinto jornal Diário Popular, quatro meses antes, Antônio do Nascimento, o Barba, à época, com 36 anos, condenado por latrocínio (roubo seguido de morte) fora avisado por Luís Tavares, o Coelho de 23, que sua “mulher” – ou seja, seu parceiro sexual passivo era um estuprador. A acusação era gravíssima, pois presos não toleram crimes sexuais.

Um briga que só envolveria duas pessoas, acabou ecoando pelos quatro cantos da penitenciária quando naquela manhã  Barba resolveu acertar sua diferença com o desafeto e, deu-lhe um soco no rosto. O agredido não poderia deixar barato, perderia o respeito daqueles que considerava serem seus aliados. A notícia do início da briga correu rápido pelas galerias do pavilhão 9; uma briga ou confusão poderia encerrar a entediante vida de 7 mil homens confinados da forma mais desumana pelo Estado.
Coelho reagiu, e machucou bastante Barba. Agora lhe restava o castigo e as punições dos agentes penitenciários. Subiu à sua cela, trocou de roupa e quando se preparava para se entregar, veio a notícia que a turma de Barba queria pegá-lo. A desinteligência entre os dois homens virou um verdadeiro acerto de contas entre dois grupos com mais ou menos 50 homens de cada lado. O aviso aos funcionários: “Sai fora, que isso é briga de preso.” A maior prova quanto à veracidade ao aviso é de que não foram feitos reféns.

 

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Familiares se aglomeram em frente à Casa de Detenção após a notícia de rebelião Foto: Folha Imagem

Vendo a movimentação intensa no Pavilhão 9, Pedrosa, diretor experiente, não se desesperou, sabia que podia resolver a situação na base da conversa ou com algum acordo. Nem deu tempo de negociar. Pouco antes das 13h40 policiais do batalhão vizinho ao Complexo do Carandiru já estavam posicionados no portão principal. Talvez alertados pelo alarme disparado por algum guarda da muralha ou pela fumaça que saia pelas janelas do pavilhão. Com os chamados de reforço via rádio, a imprensa ficou sabendo e correu até a Avenida Cruzeiro do Sul, na zona norte, para saber o que ocorria naquela sexta-feira, véspera de eleições municipais. Com medo de uma possível invasão, parentes e amigos de detentos começaram a chegar aos montes. Vindos de todos os bairros de São Paulo, às 14h30 obrigaram os PMs do policiamento de área a fecharam o quarteirão da Cruzeiro do Sul, entre as avenidas Zachi Narchi e General Ataliba Leonel.

Conflito entre PMs e parentes de detentos Foto: Ormuzd Alves/Folha Imagem
Conflito entre PMs e parentes de detentos Foto: Ormuzd Alves/Folha Imagem

No Pavilhão 9, a briga já terminara e os presidiários que pelas frestas viam a movimentação dos familiares e o grande contingente policial preparavam a abertura dos cadeados trancados por eles horas antes. O medo dos 2.069 presos da ala era por uma invasão da Tropa de Choque. Eram 15h quando junto ao coronel Ubiratan Guimarães, comandante de Policiamento do Metropolitano chegaram os primeiros homens de uma tropa de elite. Eram homens da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), que a bordo de suas veraneios passavam pelo meio dos parentes de presidiários que tomavam a frente da Casa de Detenção. Com cavalos de pau e manobras bruscas atormentavam e amedrontavam ainda mais os parentes, que a essa altura, já enfrentavam diversos conflitos com os PMs armados de escudos, cassetetes e cachorros.

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